O veredicto da justiça, sem um longo e sofrido processo de volta para dentro de si, não vai permitir ao agressor o reencontro com a sua “canção” e as razões profundas de seu gesto tresloucado. Por longos que sejam os anos passados na cadeia, dificilmente irá acontecer.
A justiça criminal, em vez de punir o criminoso em nome de uma lei fria e nem um pouco preocupada em restabelecer todas as relações rompidas com o crime, precisa repensar com urgência os dogmas de sua atual jurisprudência à luz da Justiça Restaurativa, um modelo diferente de conceber as relações entre vítima, criminoso, sociedade e punição.
A justiça convencional diz: você fez isso e tem que ser castigado! A justiça restaurativa pergunta: por que você fez isso e o que você pode fazer agora para restaurar a injustiça cometida?
Para entendermos melhor o princípio básico da justiça restaurativa, que é inclusive prática ancestral em alguns povos e cultura, apelamos a um exemplo: conta-se que numa certa tribo da África, quando uma mulher sabe que está grávida segue para a selva com outras mulheres e juntas rezam e meditam até que aparece a “canção da criança”. Quando nasce a criança, a comunidade se junta e lhe cantam a sua canção.
Logo, quando a criança começa sua educação, o povo se junta e lhe cantam sua canção. Quando se torna adulto, a gente se junta novamente e canta. Quando chega o momento do seu casamento a pessoa escuta a sua canção. Finalmente, quando sua alma está para ir-se deste mundo, a família e amigos aproximam-se e, igual como em seu nascimento, cantam a sua canção para acompanhá-lo na "viagem".
Dizem que, nesta tribo, há outra ocasião na qual os homens cantam a canção: se em algum momento da vida a pessoa comete um crime ou um ato social aberrante, o levam até o centro do povoado e a gente da comunidade forma um círculo ao seu redor. Então lhe cantam a sua canção. A tribo reconhece que a correção para as condutas anti-sociais não é o castigo, e sim o amor e a lembrança de sua verdadeira identidade. Quando a pessoa reconhece sua própria canção já não tem mais desejos nem necessidade de prejudicar ninguém.
Lenda à parte, uma comunidade de pessoas que sabem conviver e que se amam não pode se deixar enganar pelos erros que alguém comete ou as escuras imagens que,às vezes, são mostradas aos demais. Quando alguém se sente feio, a comunidade lhe recorda sua beleza; sua totalidade quando está quebrado; sua inocência quando se sente culpado e seu propósito quando está confuso.
Não sei por que, mas desde que conheci essa lenda sempre achei um bom começo de conversa para adentrar nesse novo conceito de Justiça Restaurativa. A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima, o infrator e outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime.
A simples condenação aplicada pelo juiz ao agressor, por mais dura que ela seja, por si só não redime o culpado nem tampouco satisfaz a vítima ou seus familiares, ao ponto de livrá-los dos traumas, da revolta e, muitas vezes, do desejo de vingança ainda que inconsciente. O veredicto da justiça sem um longo e sofrido processo de volta para dentro de si, não vai permitir ao agressor o reencontro com a sua “canção” e as razões profundas de seu gesto tresloucado. Por longos que sejam os anos passados na cadeia, dificilmente irá acontecer. Muito pelo contrário.
Assim diga-se da vítima e da própria comunidade. A sentença do juiz, por justa que seja, não terá força suficiente para devolver o equilíbrio emocional e a serenidade necessária para tocar a vida para frente. Da capacidade de diálogo sincero pedir e oferecer o perdão deverá brotar a punição justa e as condições necessárias para que a mesma seja eficaz.
Quais os crimes passíveis de uma Justiça Restaurativa, quais as modalidades e a metodologia consequente, quem sabe, poderão ser assunto de outros artigos. Importante é saber que não se trata de mais uma utopia para tapar o sol com a peneira.
Apesar de ser um paradigma novo, a Nova Zelândia e o Canadá, inspirados nas culturas indígenas, já vem aprofundando e praticando há tempo a Justiça Restaurativa. Aliás, já existe um crescente consenso internacional a respeito de seus princípios, inclusive oficial, em documentos da ONU e da União Européia, validando e recomendando a Justiça Restaurativa para todos os países. No Brasil, também, já está acontecendo a reflexão e as primeiras práticas.
Marco Passerini
Artigo postado em 2009 no site dos Combonianos Nordeste http//www.ecooos.org
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