terça-feira, 15 de setembro de 2015

As águas turbulentas de Francisco

Dois meses definidores: Francisco poderá encontrar águas turbulentas nos EUA e no Sínodo

Transcrito na íntegra de:
www.ihu.unisinos.br

Em geral, quando a página no calendário vira de agosto para setembro, a atmosfera no Vaticano se transforma drasticamente. Os italianos regressam de um longo recesso de verão escaldante, e o trabalho rotineiro da burocracia católica volta ao seu normal, ainda que em ritmo um tanto lento.
Neste ano, no entanto, a atmosfera mudou muito mais do que o habitual. Logo abaixo da superfície que encobre a calmaria da burocracia vaticana encontram-se assessores papais um tanto agitados.
Há uma sensação de que os próximos dois meses serão definidores para o atual pontificado, especialmente os meses que se seguirão à visita do pontífice aos Estados Unidos.
Depois de uma visita a três países latino-americanos em julho onde tudo ocorreu bem, Francisco vem se preparando para uma visita a Cuba e aos EUA em setembro, viagem que poderá enfrentar águas turbulentas – pois temos visto um papado que não evitou criticar políticos, banqueiros e bispos.
Em seus ensinamentos – desde as homilias diárias na Casa Santa Marta até a sua mais recente encíclica –Francisco vem dirigindo palavras duras contra o sistema de livre mercado que não considera as necessidades dos mais pobres, contra os bispos que se preocupam demais com aquilo que ele chama de “doutores da lei” e contra os políticos que buscam seu próprio bem em lugar do bem comum.
Francisco encontrar-se-á com os americanos em Washington, Nova York e Filadélfia entre os 22 e 27 de setembro. Em seguida, apenas seis dias após desembarcar de volta em Roma, ele convocará aquilo que possui o potencial de se tornar o principal evento de seu pontificado: a segunda edição de três semanas de duração da Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos sobre a vida familiar.
Da mesma forma como aconteceu na primeira edição do evento em 2014, a atenção da imprensa americana provavelmente irá se centrar sobre os aspectos polêmicos dos debates a serem travados pelos prelados: se deve ou não haver algum tipo de mudança na prática da Igreja para com os católicos divorciados e recasados; e como os bispos devem abordar a questão das uniões homoafetivas.
De fato, as águas estão turbulentas no lado de cá do Atlântico. Caso haja algum passo em falso na viagem aos EUA, este com certeza deixará uma impressão duradoura, talvez uma impressão que poderá alterar o status quase universalmente positivo do papa entre os 69 milhões de católicos do país.
Depois vem Sínodo de outubro. Este evento resulta de uma grande iniciativa que já dura dois anos e que incluiu a participação, sem precedentes, dos católicos de todo o mundo contribuindo com os seus pensamentos, sentimentos e esperanças concernentes a uma ampla gama de tópicos em torno do assunto família.
Milhões de pessoas estarão de olho aqui à espera de alguma orientação positiva sobre como a Igreja poderá se engajar nas lutas que as famílias modernas enfrentam. O que acontece caso os debates dos bispos não chegarem a conclusão alguma, ou pior, se elas se transformarem em brigas, possivelmente em decorrência das diferenças regionais?
A possibilidade muito real de haver debates divisionistas neste Sínodo, com as discordâncias surgindo principalmente por diferenças culturais e regionais dos participantes sinodais, ficou clara com a publicação recente de vários livros que tentam definir o tom, antecipadamente, dos debates por vir.
Em um destes livros, a ser lançado nesta terça-feira (15 de setembro), onze cardeais instam o Sínodo a não sugerir nenhuma mudança nas práticas pastorais da Igreja concernentes aos católicos divorciados e novamente casados. Em um outro, a ser lançado em 30 de outubro, dez bispos e cardeais africanos apresentam argumentos que vão no mesmo sentido.
O tom do primeiro livro, intitulado “Eleven Cardinals Speak on Marriage and the Family: Essays from a Pastoral Viewpoint” [Onze cardeais falam sobre o matrimônio e a família: Ensaios a partir de um ponto de vista pastoral, em tradução livre], fica evidenciado nas palavras de um capítulo escrito pelo cardeal holandês Willem Jacobus Eijk, deUtrecht, que estará presente no Sínodo.
Eijk escreve que um novo casamento civil, por um casal que não recebeu a devida anulação do primeiro casamento onde for o caso, é simplesmente “uma forma de adultério estruturado e institucionalizado”.
Um terceiro livro, já lançado, vem das mãos do Cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Natural da Guiné, na África Ocidental, e que vai participar do Sínodo em virtude de seu cargo, Sarah fala, em termos bastante contundentes, que se opõe a qualquer mudança na prática da Igreja.
“Eu, portanto, afirmo solenemente que a Igreja na África é contrária a qualquer rebelião contra o ensinamento de Jesus e do Magistério”, escreve ele a certa altura do livro “God or Nothing: A Conversation on Faith With Nicolas Diat” [Deus ou Nada: Um diálogo sobre a fé com Nicolas Diat, em tradução livre].
Os sinais de alerta com relação à viagem aos EUA são menos dramáticos. Mas muitos se perguntam como este papa, natural da Argentina e que nunca visitou o país [EUA], irá se sair numa série de questões que podem desafiar e desacomodar muitos grupos locais.
Imigração, mudanças climáticas, aspectos negativos do capitalismo – eis alguns dos assuntos polêmicos da política americana que se fazem presentes regularmente entre as preocupações do papa, assim como o respeito pela dignidade e a vida humana.
Em agosto deste ano, o embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé disse, ao Catholic News Service, que não acha que Francisco vai repreender algum grupo em específico, mas que também o papa não terá medo em dizer o que pensa que precisa ser dito.
“Não acho que ele está vindo aos Estados Unidos para hostilizar, criticar, chamar a atenção das pessoas”, disse o embaixador. “Acho que ele está vindo para agregar. Ele não vai hesitar, porém, de falar francamente sobre algumas das questões que lhe tocam apaixonadamente”.
Nas vésperas de sua visita aos EUA, Francisco deu um passo extraordinário convidando o programa televisivo World News Tonight, da rede ABC, ao Vaticano para que se realizasse um encontro virtual com fiéis católicos americanos em três cidades do país.
O evento contou com o papa interagindo com pequenos grupos de fiéis em Chicago, Los Angeles e McAllen, no Texas. Em espanhol, Francisco disse que queria usar esta viagem para conhecer melhor as pessoas locais, “para me aproximar de vocês, do caminho que percorreram, em sua história”.
Como acontece com qualquer líder político ou espiritual, Francisco corre o risco aqui de incorrer em algum erro de juízo – o que poderá marcar para sempre o seu legado. Pensemos no Papa Bento XVI em Regensburg, Alemanha, ao citar uma crítica feita por um estudioso medieval do Islã; ou no presidente George W. Bush em Nova Orleans após o furacão Katrina.
Ou, com a confluência dos debates nos próximos meses sobre a prática da Igreja e a corda bamba da diplomacia papal, pensemos no Papa Paulo VI.
Apesar de o Papa Paulo ter feito muito em seus 15 anos de papado – levando o Concílio Vaticano II ao seu final, sendo o primeiro papa a visitar os EUA e o continente africano, também o primeiro discursar na ONU e a renunciar a tiara papal –, ele é lembrado, pela maioria dos americanos ao menos, por uma única coisa: a encíclica Humanae Vitae.
De qualquer forma, os próximos dois meses deste papado poderão ser tão decisivos quanto o foi aquela opção, feita na citada encíclica, de proibir o uso de anticoncepcionais entre os fiéis.
O que faz valer a pena repetir o pedido que Francisco fez durante o encontro virtual com os fiéis: “Estou orando por todos vocês, o povo dos Estados Unidos, e peço que vocês orem por mim”.



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