domingo, 20 de março de 2011

SANTO JÁ É... e faz tempo!

 "Se Oscar Romero não for beatificado, será difícil encontrar outro bispo que possa ser martir"

 Aos 30 anos do assassinato de Dom Romero, José María Tojeira, reitor da Universidade Centro-Americana do El Salvador, afirma que "o martírio sempre tem uma dimensão política". O artigo foi publicado no sítio Religión Digital, 24-02-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

"Nos tempos duros da guerra, acusava-se Dom Romero de ser uma pessoa débil de caráter, que havia dividido o país e que tinha erros doutrinais. As próprias Forças Armadas publicaram um folheto intitulado "A Igreja do povo nasce no El Salvador", dedicado a expôr esse tipo de acusações.
Hoje, ninguém mais presta atenção nessas bobagens. Mas quando a causa de beatificação do arcebispo mártir avança, mesmo que seja a passos excessivamente lentos, começa-se a dizer que a politização de sua figura impede o avanço do processo vaticano. E curiosamente quem mais difunde essa ideia é o jornal que, em seu tempo, dava espaço aos ataques mais inflamados contra Dom Romero, a quem chamava sem inibição de bispo vermelho e todas essas sandices que são usadas por aqueles que, no passado, justificavam o assassinato daqueles que pensavam diferentemente a eles.
Sobre os processos de beatificação na Igreja, aproveitando esse tempo "romeriano", é bom fazer alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, qualquer comunidade cristã tem direito de pedir a beatificação daquelas pessoas que foram exemplares e despertaram proximidade com  o Evangelho de Jesus Cristo.
Posteriormente, o serviço da autoridade na Igreja deve investigar e analisar se a petição procede. Mas, independentemente da ideologia que tivermos, se formos cristão, temos o pleno direito de desejar e pedir que seja colocado nos altares aquele que, para nós, é exemplar em sua radicalidade evangélica. O fato de pessoas de esquerda pedirem beatificações não é nem pode ser um obstáculo para beatificar alguém.
Assim como não é quando pessoas de direita o pedem. Chamar alguém de santo, ou dizer a partir da livre opção cristã que alguém é mártir, nunca é culto público, se não for utilizado dentro da liturgia formal da Igreja. Se podemos dizer de alguém, inclusive estando vivo, que é um santo homem, como não podemos dizer de Dom Romero, ou de Dom [Arturo] Rivera, que foi um arcebispo santo. Embora não possamos nem devamos incluir na liturgia eclesial invocações não autorizadas para o culto público, o direito de opinar sobre a santidade ou o martírio é um direito claro de qualquer cristão.


A santidade, e principalmente o martírio, sempre tem sua dimensão política, entendida esta no sentido amplo da palavra. Para os cristãos, os santos produzem melhorias na "polis", constroem "cidade de Deus" na terra e tornam os homens e as mulheres com quem se relacionam mais humanos. O martírio, por sua parte, não pode ser explicado plenamente sem vê-lo como uma oposição claramente política, em seu sentido amplo de novo, à idolatria do poder.
A palavra mártir em seu sentido atual no cristianismo nasce a partir daqueles que derramaram seu sangue por se negar a reconhecer os imperadores romanos como senhores da história. Bastava dizer diante da estátua do imperador a simples e curta frase que diz: "O César é o Senhor" para que o cristão ficasse livre da morte. A Igreja não pode esquecer essa dimensão política do martírio. Porque é real, em primeiro lugar, e porque, ao esquecê-la, correria o perigo de justificar aqueles que hoje ainda continuam idolatrando o poder ou algumas de suas dimensões.
Dom Romero foi enormemente crítico e firme diante da idolatria do poder (e obviamente diante da idolatria do dinheiro), e, em grande parte, o mataram por causa disso. Ele jamais justificou a violência de ninguém como mecanismo de acesso e/ou permanência no poder e, nesse sentido, contrastava com o meio ambiente político de sua época, que confiava excessivamente nos mecanismos violentos na hora de fazer política. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a dimensão política do martírio de Dom Romero é muito clara e evidente. Nosso arcebispo mártir propiciava uma política do bem comum arraigada na Doutrina Social da Igreja, pacifista e partidária de enfrentar a partir da conversão e o diálogo as injustiças estruturais e as violações sistemáticas dos Direitos Humanos.


A figura de Dom Romero foi conquistando cada vez mais luz e força com a passagem dos anos. Ela não só ilumina novas dimensões que devem estar presentes na figura do bispo na Igreja Católica, mas também se tornou amplamente ecumênica. A confissão anglicana, tão próxima da católica, o considera um mártir do século XX. E algo parecido pensam os luteranos, os batistas e outras confissões de longa tradição e raiz cristã. Na Igreja Católica, João Paulo II insistiu que o bispo, em meio à crise mundial caracterizada por "uma guerra dos poderosos contra os fracos", tivesse atitudes e características muito semelhantes às que teve o nosso santo arcebispo.
Na realidade, ele recuperou, no texto que citamos, a dimensão política ampla que tantos bons bispos tiveram na América Latina. E a dimensão política do martírio, porque, sim, são assassinados por serem voz dos pobres. Com efeito, o Papa insiste que, diante dos desafios do nosso mundo atual, o bispo deve estar "afiançado no radicalismo evangélico", está chamado a uma enorme liberdade para pregar a Palavra ("parresia"), pede-se que ele seja "profeta de justiça", "defensor e pai dos pobres, é zeloso da justiça e dos direitos humanos", e lembra que "se não houver esperança para os pobres, não a haverá para ninguém, nem mesmo para os chamados ricos".
E, finalmente, para que a semelhança seja maior com Dom Romero, o bispo "toma a peito a defesa de quem é débil, dando voz a quem a não tem para fazer valer os seus direitos". Se Dom Romero não merece a beatificação como mártir depois dessas palavras de João Paulo II em sua Exortação Apostólica Pastores Gregis, será difícil encontrar no futuro um bispo que possa ser beatificado como mártir".

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