"Se Oscar Romero não for beatificado, será difícil encontrar outro bispo que possa ser martir"
Aos 30 anos do assassinato de Dom Romero, José María Tojeira, reitor da Universidade Centro-Americana do El Salvador, afirma que "o martírio sempre tem uma dimensão política". O artigo foi publicado no sítio Religión Digital, 24-02-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Nos tempos duros da guerra, acusava-se Dom Romero de ser uma pessoa débil de caráter, que havia dividido o país e que tinha erros doutrinais. As próprias Forças Armadas publicaram um folheto intitulado "A Igreja do povo nasce no El Salvador", dedicado a expôr esse tipo de acusações.
Hoje, ninguém mais presta atenção nessas bobagens. Mas quando a causa de beatificação do arcebispo mártir avança, mesmo que seja a passos excessivamente lentos, começa-se a dizer que a politização de sua figura impede o avanço do processo vaticano. E curiosamente quem mais difunde essa ideia é o jornal que, em seu tempo, dava espaço aos ataques mais inflamados contra Dom Romero, a quem chamava sem inibição de bispo vermelho e todas essas sandices que são usadas por aqueles que, no passado, justificavam o assassinato daqueles que pensavam diferentemente a eles.
Sobre os processos de beatificação na Igreja, aproveitando esse tempo "romeriano", é bom fazer alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, qualquer comunidade cristã tem direito de pedir a beatificação daquelas pessoas que foram exemplares e despertaram proximidade com o Evangelho de Jesus Cristo.
Posteriormente, o serviço da autoridade na Igreja deve investigar e analisar se a petição procede. Mas, independentemente da ideologia que tivermos, se formos cristão, temos o pleno direito de desejar e pedir que seja colocado nos altares aquele que, para nós, é exemplar em sua radicalidade evangélica. O fato de pessoas de esquerda pedirem beatificações não é nem pode ser um obstáculo para beatificar alguém.
Assim como não é quando pessoas de direita o pedem. Chamar alguém de santo, ou dizer a partir da livre opção cristã que alguém é mártir, nunca é culto público, se não for utilizado dentro da liturgia formal da Igreja. Se podemos dizer de alguém, inclusive estando vivo, que é um santo homem, como não podemos dizer de Dom Romero, ou de Dom [Arturo] Rivera, que foi um arcebispo santo. Embora não possamos nem devamos incluir na liturgia eclesial invocações não autorizadas para o culto público, o direito de opinar sobre a santidade ou o martírio é um direito claro de qualquer cristão.
A santidade, e principalmente o martírio, sempre tem sua dimensão política, entendida esta no sentido amplo da palavra. Para os cristãos, os santos produzem melhorias na "polis", constroem "cidade de Deus" na terra e tornam os homens e as mulheres com quem se relacionam mais humanos. O martírio, por sua parte, não pode ser explicado plenamente sem vê-lo como uma oposição claramente política, em seu sentido amplo de novo, à idolatria do poder.
A palavra mártir em seu sentido atual no cristianismo nasce a partir daqueles que derramaram seu sangue por se negar a reconhecer os imperadores romanos como senhores da história. Bastava dizer diante da estátua do imperador a simples e curta frase que diz: "O César é o Senhor" para que o cristão ficasse livre da morte. A Igreja não pode esquecer essa dimensão política do martírio. Porque é real, em primeiro lugar, e porque, ao esquecê-la, correria o perigo de justificar aqueles que hoje ainda continuam idolatrando o poder ou algumas de suas dimensões.
Dom Romero foi enormemente crítico e firme diante da idolatria do poder (e obviamente diante da idolatria do dinheiro), e, em grande parte, o mataram por causa disso. Ele jamais justificou a violência de ninguém como mecanismo de acesso e/ou permanência no poder e, nesse sentido, contrastava com o meio ambiente político de sua época, que confiava excessivamente nos mecanismos violentos na hora de fazer política. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a dimensão política do martírio de Dom Romero é muito clara e evidente. Nosso arcebispo mártir propiciava uma política do bem comum arraigada na Doutrina Social da Igreja, pacifista e partidária de enfrentar a partir da conversão e o diálogo as injustiças estruturais e as violações sistemáticas dos Direitos Humanos.
A figura de Dom Romero foi conquistando cada vez mais luz e força com a passagem dos anos. Ela não só ilumina novas dimensões que devem estar presentes na figura do bispo na Igreja Católica, mas também se tornou amplamente ecumênica. A confissão anglicana, tão próxima da católica, o considera um mártir do século XX. E algo parecido pensam os luteranos, os batistas e outras confissões de longa tradição e raiz cristã. Na Igreja Católica, João Paulo II insistiu que o bispo, em meio à crise mundial caracterizada por "uma guerra dos poderosos contra os fracos", tivesse atitudes e características muito semelhantes às que teve o nosso santo arcebispo.
Na realidade, ele recuperou, no texto que citamos, a dimensão política ampla que tantos bons bispos tiveram na América Latina. E a dimensão política do martírio, porque, sim, são assassinados por serem voz dos pobres. Com efeito, o Papa insiste que, diante dos desafios do nosso mundo atual, o bispo deve estar "afiançado no radicalismo evangélico", está chamado a uma enorme liberdade para pregar a Palavra ("parresia"), pede-se que ele seja "profeta de justiça", "defensor e pai dos pobres, é zeloso da justiça e dos direitos humanos", e lembra que "se não houver esperança para os pobres, não a haverá para ninguém, nem mesmo para os chamados ricos".
E, finalmente, para que a semelhança seja maior com Dom Romero, o bispo "toma a peito a defesa de quem é débil, dando voz a quem a não tem para fazer valer os seus direitos". Se Dom Romero não merece a beatificação como mártir depois dessas palavras de João Paulo II em sua Exortação Apostólica Pastores Gregis, será difícil encontrar no futuro um bispo que possa ser beatificado como mártir".
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