sábado, 18 de outubro de 2014

''Discussão livre em uma instituição autoritária? É uma revolução!'' 

A cientista política alemã Gesine Schwan fala sobre o Sínodo sobre a família, sobre Francisco e sobre a força da palavra libertada. Schwan é diretora da Humboldt-Viadrina Governance Platform, em Berlim.
A reportagem é de Christiane Florin, publicada na revista Christ und Welt, nº 43, de outubro de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

A senhora é especialista em boa governança. Francisco governa bem a Igreja Católica?

Se usarmos critérios de julgamento humanos, a Igreja Católica não é bem governada. É autocrática e exclui as mulheres. Mas, mesmo sem aplicar critérios puramente humanos, ela poderia ser decididamente mais bem governada. O papa atual está fazendo mudanças, como João XXIII tinha começado a fazer. Mas ele ainda tem um longo caminho pela frente. A Igreja ainda é demasiadamente considerada como uma instituição de pessoas consagradas, e não como uma instituição de todos fundada por Deus, como povo de Deus a caminho.

Francisco exortou o Sínodo dos bispos a uma discussão aberta. Como é possível uma palavra livre em uma instituição autoritária?

É uma revolução! O seu discurso de introdução me impressionou. Era conciso, incomum, meditado, independente e dirigido às pessoas. Uma discussão que só pode ser levada adiante se não se tiver temores e se se tiver uma atitude de abertura aos argumentos dos outros, e isso – como princípio geral – é algo novo na Igreja.

Revolução: uma palavra que leva a pensar em um sistema abalado desde os fundamentos.

Depende do que se entende por fundamentos da Igreja. Se entendermos obediência cega em relação à instituição, então os fundamentos vacilam. Se entendermos o mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo, então a discussão livre sustenta o sistema. A obediência cega só é pedida por aqueles que não creem na razão e na capacidade de compreensão do ser humano. Eu trabalhei em muitos grupos de diálogo católicos. Vê-se imediatamente que aqueles que, acima de tudo, buscam obediência na Igreja têm uma imagem pessimista do ser humano. Eles acreditam que as pessoas são irracionais, que os instintos, especialmente a sexualidade, fogem do controle. Essa desconfiança está em contraste com a minha profunda fé na boa criação de Deus.

Uma Igreja pode renunciar a estabelecer a fé certa?

Não pode. Ela foi fundada por Deus e não por uma assembleia constituinte. Mais cedo ou mais tarde, sempre se repropõe a questão da ortodoxia. Francisco é corajoso, busca uma solução engenhosa para esses problemas de ortodoxia, apelando à capacidade de compreensão dos seus bispos. Ele vê claramente que a imposição autoritária da Humanae vitae tentada até agora era o caminho equivocado.

Está equivocada apenas a transmissão ou também a doutrina?

Está equivocada a atual moral sexual católica. Isso não significa que as pessoas que a recusam tenham toda razão. Basicamente, acho muito correta e convincente a visão católica de considerar a sexualidade como algo abrangente, que compreende toda a pessoa. Mas a subserviência da sexualidade somente à procriação, a proibição dos meios de contracepção, tudo isso não tem um fundamento teológico. A Igreja deveria se libertar de tais conceitos baseados na suspeita.

Por que a moral sexual tem um papel tão grande para a instituição?

A sexualidade desempenha um papel importante para todos os sistemas autoritários. Ela não é facilmente manipulável e controlável, o que a torna perigosa para aqueles que querem dominar. Agora, se acrescentarmos o problema do gênero...

Francisco não ouve de bom grado a palavra "gênero"...

Isso não me impede de usá-la. Eu me batizei como católica aos 21 anos, foi uma decisão consciente. Por que eu deveria deixar que me proibissem o uso de uma palavra, só porque o papa ou muitos católicos conservadores não a ouvem de bom grado? Eu não poderia ser membro fiel de uma Igreja que pretendesse isso de mim. A qualquer pessoa que saiba pensar autonomamente parece claro que a moral sexual católica tem algo a ver com o comportamento de gênero. Eu estudei sociologia e ciência política. Seria cega se eu visse que uma comunidade de homens apenas, como é o clero em parte, tem um problema de gênero.

Por que, apesar de tudo, a senhora se batizou?

Meu pai era protestante, mas deixou a Igreja. Minha mãe era católica. Meu pai quis deixar a mim a decisão de fazer parte ou não de uma Igreja. Por isso, não fui batizada. Eu ia à missa com a minha mãe e ainda hoje tento ir todos os domingos. A missa me lembra do que eu vivo. Concentrar-me em Deus me ajuda a responder, neste tempo agitado, à pergunta: o que é realmente importante?

As comunidades de homens apenas, sobre as quais falava, têm poder sobre a senhora?

Sobre quem a Igreja realmente ainda tem poder? Ela certamente não pode impor a sua doutrina com metralhadoras, e a ameaça das penas do inferno não funciona mais. Ao invés, ela precisa de uma verdadeira autoridade. Infelizmente, sobre muitas questões e para muitas pessoas, ela não tem mais uma verdadeira autoridade. Mas a subdivisão dos papéis entre os gêneros é realmente uma questão de poder. Em uma tradição autoritária, à sexualidade está ligado um modo de entender os papéis segundo o qual a mulher está a serviço. A inversão dessa concepção em favor de uma visão paritética desencadeia a angústia da perda em todos os homens que fundamentam a sua autoestima sobre essas posições arcaicas. Por isso, matrimônio e família são temas tão importantes para homens conservadores. Mas, justamente, para eles, não se trata de defender a família. Trata-se de manter o poder do papel masculino.

Como acabará batalha em Roma?

A ideia de Francisco de uma discussão livre é muito inteligente e encorajadora. No entanto, certas posições superadas absolutamente não podem mais ser afirmadas à luz de uma discussão livre. Não sou da ideia de que a Igreja deva se adequar a qualquer espírito do tempo. Mas certamente não se pode voltar atrás sobre a autodeterminação das pessoas, nem sobre o modo de entender os papéis, nem sobre a sexualidade. Recentemente, falei para terapeutas da família. Estes estão há tempos muito mais à frente do que muitas pessoas na cúpula da Igreja, e isso torna a situação tão assustadora. Na Igreja, precisamente, se deveria agir de modo a libertar a família das concepções opressivas de poder e, assim, contribuir para a realização de uma vida plena e feliz de mães, pais e filhos.

A senhora acredita na indissolubilidade do matrimônio?

Alegra-me ver duas pessoas que são fiéis uma à outra por toda a vida. Isso requer muito mais respeito do que há 150 anos, quando as pessoas não envelheciam tanto. Acho justa a norma segundo a qual não se entra em uma relação de aliança temporária, mas há o compromisso com uma pessoa para sempre. O sacramento é administrado pelos esposos, não é a Igreja que o administra. Mas eu acho desumano que esse sacramento seja usado para vetar um segundo matrimônio, se o primeiro foi um fracasso. Por que duas pessoas deveriam trocar menos seriamente a promessa de matrimônio quando se permitisse que os divorciados em segunda união recebam a comunhão? Só o fato de que eles queiram recebê-la, fala a favor da sua seriedade. Eu tenho mais confiança nas pessoas.

Cá com os meus botões... é bom não esquecer as palavras de Francisco na abertura do Sínodo:

"O sonho de Deus 
sempre confronta a hipocrisia 
de alguns servidores seus. 
Podemos frustrar o sonho de Deus 
se não nos deixamos guiar 
pelo Espírito Santo"

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