quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Francisco e a loucura do amor 
mais forte do que a lei

A tarefa da Igreja, declara um papa finalmente, é outra: não ser mais uma instituição governada pelo poder e pela riqueza, mas ser ‘sinal de contradição’, paradoxo, escândalo e, assim, remeter a outro estilo e a outra vida possível.”

A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 22-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Amor? Perdão? Neste mundo onde tudo é cálculo, técnica, desempenho; neste mundo onde tudo responde a uma lógica legal, do útil, do rentável, do necessário; neste mundo onde sempre e de todos os modos todos devem pagar tudo com dinheiro, mas ainda mais com a liberdade, o tempo, a vida; neste mundo de fortes, espertos, poderosos e prepotentes, neste mundo que assim é e assim sempre será, a tarefa da Igreja, declara um papa finalmente, é outra: não ser mais uma instituição governada pelo poder e pela riqueza, mas ser “sinal de contradição”, paradoxo, escândalo e, assim, remeter a outro estilo e a outra vida possível.
É a utopia da gratuidade, do desinteresse, da generosidade, da nobreza de alma: de tudo aquilo a que Francisco se refere ao dizer “misericórdia”. Essa palavra um pouco oleosa e desgastada para a linguagem contemporânea e que quase ninguém usa mais adquire com ele um sabor novo e um frescor inesperado...
Para o mundo em que vivemos e trabalhamos, a lei é e sempre será importante, ele não pode abrir mão dela, assim como não pode abrir mão da espada para punir os transgressores. Mas a tarefa daquela loucura que se chama cristianismo é outra. E, finalmente, há mais de três anos, chegou um papa “do fim do mundo” para reafirmar que a Igreja existe para indicar que, no fundo das nossas existências, há algo mais importante do que a lei e a ordem, e é o ser humano na sua concretude. Incluindo aquelas desordens humanas que a Igreja chama de “pecados”. E daquela desordem bastante particular que é o aborto.
Não que, para o papa, os pecados não sejam mais relevantes e o aborto não seja mais um pecado. Ao contrário: “Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente”. O aborto, como tal, nunca será aceitável pela consciência cristã, porque ela está convencida de que, diante de uma vida diferente da própria, a senhoria do Eu deve se deter e proceder com o máximo respeito, em nome da não violência e daquela cultura da paz que se deseja que seja aplicada pelos Estados para resolver os conflitos e por cada vez mais pessoas na alimentação e no tratamento dos animais. Aquele serzinho chamado ao mundo sem o seu conhecimento e que agora, no ventre materno, só quer viver, deve ser protegido, e deve-se permitir que ele subsista no seu impulso vital: não é preciso ser cristão para reonhecer isso, todas as religiões o fazem, assim como inúmeros filósofos, dentre os quais Giordano Bruno e Norberto Bobbio.
Mas uma coisa é o aborto, outra coisa é a mulher que aborta e o médico que realiza o aborto. Se essas pessoas compreendem o mal cometido contra aquele serzinho inocente (às vezes, realizado para evitar outros males mais incumbentes), a Igreja de Francisco está pronta para conceder o perdão do modo mais simples, porque aquilo que, até agora, era reservado aos bispos é agora concedido ordinariamente a todos os sacerdotes.
Escreve o papa: “Concedo a partir de agora a todos os sacerdotes a faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do aborto”. Por quê? Porque “posso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir”.
Estamos a anos-luz de distância daquela intransigência que, em 2009, levou um bispo brasileiro a excomungar a mãe e os médicos que haviam feito com que uma menina de nove anos abortasse, grávida depois das violências do padrasto e que corria o risco de morte também pelo fato de que se trataria de um parto de gêmeos.
Naquele tempo, do Vaticano, o porta-voz do Pontifício Conselho para a Família defendeu o bispo, afirmando que a Igreja “nunca pode trair o seu anúncio, que é o de defender a vida desde a concepção até ao seu termo natural, mesmo diante de um drama humano tão forte”.
O Papa Francisco, em vez disso, diz outra coisa: ele posiciona a Igreja não mais na defesa, como um rígido sentinela, mas no ataque, no centro do mundo, para anunciar a loucura do amor universal por ele chamado de misericórdia. Essa sua posição poderá abrir um debate sobre o número cada vez maior de médicos objetores? Se é verdade, de fato, que o aborto é sempre um mal, é igualmente verdade que, às vezes (por exemplo, no caso de estupro ou de perigo de morte da mãe), é um mal necessário para evitar outros maiores.
Os muitos caluniadores do papa terão agora mais argumentos para acusá-lo de laxismo. Mas eles não sabem o que dizem. Não há o menor vestígio de laxismo nesse documento, nem em toda a pregação, nem na austera pessoa do Papa Francisco. No máximo, há o atento rigor de quem realmente entendeu em que consiste a revolução evangélica, muitas vezes traída pelos aparatos eclesiásticos, preocupados com o poder e a ordem, e não em serem coerentes com aquele amor evangélico que quer sempre e apenas o bem concreto da pessoa concreta, e que, por isso, sabe ser mais forte até do que a lei, incluindo a eclesiástica.

A saga de Francisco

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